Golfe, música, amizade

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Por Marcio Pinheiro

Quando eu trabalhava na Gazeta Mercantil, uma das minhas tarefas semanais era baixar uma coluna de golfe. O esporte não encontrava em mim nenhum eco, mas como eu era obrigado a ler sobre isso todas as quintas-feiras, fui me familiarizando com termos como “green”, “swing” e “holes”.

Não me tornei nem de longe um Tiger Woods, porém meu interesse aumentou sensivelmente depois que me tornei próximo do autor daquelas linhas: Guillermo Piernes.

No final dos anos 90, ele já era uma referência na profissão. Havia passado por dezenas de redações entre a Argentina, os Estados Unidos e o Brasil. Em seu país, ele começou no ofício por cima, na revista El Gráfico, um semanário que durante décadas foi uma referência a todos que gostam de futebol e jornalismo.

Lá. Guillermo, ainda ensaiando suas primeira jogadas no jornalismo, pôde ver Pelé em ação a poucos metros de distância e também pôde ver o seu Racing se tornar campeão da América em 1967. No Brasil, para onde se mudou nos anos 70, Guillermo passou por redações e agências de notícias. E em todas elas deixou pelo menos dois legados: o rigor profissional e a elegância.

Guillermo é uma daquelas figuras naturalmente elegantes, um sujeito simpático, de bom papo e com leveza. Enfim, alguém fácil de se gostar e de se querer ter por perto. No convívio esporádico das redações – eu aqui em Porto Alegre, ele em São Paulo, às vezes vindo ao Sul, quase sempre para campeonatos – virei seu amigo. E com ele aprendi algumas coisas sobre o golfe e a vida.

Aprendi, por exemplo, que o golfe talvez seja o único esporte onde não há adversário direto. O seu rival é você mesmo. Que belo microcosmo da vida em que é possível compreender que se você não fizer a coisa certa não adianta torcer pelo erro do outro – e isso acaba valendo para qualquer atividade humana. Também descobri que John Updike, um dos meus autores preferidos, também é um aficionado pelo golfe. Ficou mais fácil ter simpatia pelo esporte.

Guillermo, por fim, é filho de Justo Piernes, um mestre argentino do ofício. E talvez por causa da lembrança do pai – e por insistência minha -, Guillermo aceitou estrear na AmaJazz. Em seu relato, Guillermo fala muito de Astor Piazzolla, o maior compositor argentino, amigo de seu pai e, por tabela, seu também.

O perfil a seguir é ao mesmo tempo leve e rigoroso. Mescla paixões comuns, como a música, a Argentina, o passado, o uísque e as conversas. O esporte fica de lado. Piazzolla, pelo que se sabe, não era do golfe. Preferia atividades mais amenas, como a pesca de tubarões.

Apesar do convívio de mais de duas décadas, só fiquei sabendo há poucos dias da proximidade de Guillermo com Piazzolla. Assim, me apressei em pedir a ele que escrevesse algo sobre isso. Fui atendido quase que imediatamente. Guillermo interrompeu os relatos que anda compilando para seu livro de memórias. Livro este que me orgulho – segundo as palavras dele – de ser um dos maiores incentivadores

O que será lido a seguir é um pequeno prólogo de um projeto maior que Guillermo deve a todos nós. E, como se não bastasse, é ainda um manifesto pela amizade.

Obrigado por esta tacada perfeita, meu amigo!

* Márcio Pinheiro jornalista, produtor cultural e editor. Autor do livro Esse tal de Borghettinho, biografia do músico Renato Borghetti. Criador e editor do site Amajazz.

https://amajazz.com.br/2020/06/02/o-amigo-de-meu-pai/

Piazzola: Um gênio amigo do meu pai (Por Guillermo Piernes)

Aviso importante: este texto é tendencioso e parcial. É sobre Astor Piazzolla, esse gênio da música com quem tive o privilégio de conviver durante anos. Confesso que sou louco pela obra desse músico que foi do jazz ao tango, do clássico às mais audazes inovações e a tantos fez chorar, viajar, amar, sonhar.
Astor Pantaleon Piazzolla Manetti nasceu em Mar del Plata, Argentina, em 1921, neto de italianos pelos quatro lados. Viveu dos quatro aos 15 anos no East Village, em Nova York, onde começou a tocar bandoneón com oito anos.
Aos 12, começou aulas de piano com o pianista húngaro Bela Wilde, discípulo de Sergei Rachmaninoff, e quando estava com 18 já era um músico destacado nos palcos de Buenos Aires: foi o segundo bandoneón e depois arranjador na orquestra de Aníbal Troilo, um dos nomes mais importantes do tango. Troilo se apresentava em salões elegantes e clubes. Também em cabarés e outros locais provavelmente mal falados.
Num dos salões chiques ou em um dos outros locais – tenho esse ponto impreciso – Piazzolla ficou amigo de outro jovem amante do tango e dos seus personagens. Esse companheiro das noitadas também possuía enorme talento – porém apenas para escrever. Justo era seu nome e ele começava a se destacar como jornalista.
Ele e Piazzolla ficaram amigos. Certa vez, a orquestra de Troilo se apresentou num grande baile de um clube de futebol. Nessa mesmíssima noite, Justo convidou a bailar uma bela mulher de longos cabelos pretos, Délia. Foram muitos tangos. Justo Piernes e Délia Borbolla passaram a viver juntos e, dessa união, eu nasci.
Relatei esse assunto porque tive muito acesso a Piazzolla. Eu era o filho do seu amigo. Sendo assim, tive a fortuna de testemunhar e compartilhar fascinantes momentos ao lado dele, sob e longe dos holofotes.
Nunca me importou que Piazzola me tratasse somente como o filho de Justo. Esse mesmo trato se manteve de minha adolescência até a idade adulta. O que me importava era poder estar perto dele ou acompanhar a sua arte. Sempre foram momentos memoráveis.
Em 1969, o grande ginásio coberto Luna Park recebeu o Festival del Tango. Como jovem repórter da UPI – agência de notícias que alimentava uns 500 jornais, rádios e emissoras de televisão apenas na Argentina – fui enviado para cobrir o evento. “Vai ver Piazzolla, o amigo do teu pai”, me disse Bernardo Rabinotz ou simplesmente Rabino, chefe de redação.
No festival, as orquestras foram passando sem destaque. Até que Piazzolla subiu ao palco com uma grande orquestra com vários violinos e uma mulher como cantante, Amelita Baltar. O silencio pairou entre as cinco mil pessoas que estavam no então maior estádio sul-americano de boxe. No microfone a vibrante voz feminina martelou os versos do poeta Horacio Ferrer acariciada pelos suaves violinos: “…Quereme asi piantao, piantao, piantao… subite a esa ternura que tengo para vos…”. Os violinos elevavam o tom acompanhando o crescendo do bandoneón do maestro. O impacto chegou como um gancho na mandíbula.
Com os acordes finais de Balada Para un Loco, o Luna Park explodiu. Após alguns instantes, uns fanáticos resolveram reagir, levantando da lona. Surgiram ruidosas vaias e gritos em coro “Eso no es tango… eso no es tango”. Eu na época sabia menos do que hoje sei, mas nunca tive dúvida de que aquilo era tango. Os integrantes do júri – aturdidos – tiveram que pedir que Piazzolla executasse novamente Balada Para um Loco para que pudessem ouvir sem o barulho dos tumultos. E assim foi feito. E novamente vivas, palmas, vaias e gritos atrapalharam a apresentação. Um jurado chamou a atenção ao público e exigiu silêncio para que pudesse ouvir uma terceira execução. Não era uma noite de boxe, era de música. Não lembro o tango que os jurados declararam como vencedor do Festival – Balada Para un Loco ficou em segundo.
Em 1976, Justo Piernes, nessa altura famoso jornalista do matutino Clarín, teve de deixar Argentina sob ameaças de morte do grupo de extermínio paramilitar Triple A. Muitos exemplares do seu livro Crónicas com Bronca foram queimados. Eu e Cristina Cardoso, psiquiatra e então minha mulher, tivemos que dar asilo a meu pai no Brasil. Meses depois Piazzolla aterrissou no Rio. No mesmo dia, deixou as malas no hotel e foi beber um uísque com meu pai na varanda do nosso apartamento na Avenida Atlântica. Piazzolla e Justo ficaram embrenhados em longas conversas. Em silencioso êxtase, eu acompanhei as espirituosas conversas dos meus ídolos.
Na mesma temporada, descobri que Piazzolla tinha por hábito dormir pouco porque dizia sentir que na sua cabeça eram marteladas a toda hora ideias para novas músicas. Piazzolla foi o autor de mais de 500 composições. Os seus dedos se mexiam constantemente talvez executando um bandoneón imaginário ou regendo uma orquestra de sonhos. Dificilmente, ele lembrava em qual cidade (ou mesmo país) seria seu próximo espetáculo. Importava-lhe exclusivamente a qualidade do repertorio e os maestros que o acompanhariam.
Outra paixão de Piazzolla foi Amelita Baltar. Até conhecê-lo, ela cantava apenas canções folclóricas, a música do interior argentino. Piazzolla a convidou para participar da opera-tanguera Maria de Buenos Aires. E ela foi estupenda no palco. Depois, Piazzolla a convidou para dividir com ele a sua vida. Ela aceitou. Acredito que Piazzolla não conseguia separar vida e música – a música era sua vida.
Um dia recebemos a notícia de que Piazzola tinha separado de Amelita. Piazzolla voltou dias depois ao Rio para um show num teatro da Zona Sul. Na mesa do restaurante, depois do show, meu pai perguntou se ele tinha ouvido os pedidos do público – não atendidos – para tocar Balada Para un Loco. “Essas obras foram lixo”, respondeu Piazzolla.
Anos mais tarde, Piazzolla e Amelita voltaram a ser amigos. As composições que num momento de raiva foram renegadas passaram a integrar a lista das grandes composições da música. Tudo em Piazzolla era intenso. As músicas, os relacionamentos, suas frases. Era a loucura da genialidade que o castigava a toda hora. Para relaxar entre tantas viagens e apresentações, Piazzolla pescava tubarões na costa de Punta del Este.
Em outra passagem pelo Rio de Janeiro, Piazzolla chegou com o seu quinteto. Destacava-se o violonista Antonio Agri, premiado intérprete de música clássica. O público delirou. Meses depois voltou sem o violino e com um sintetizador. “O sintetizador é a força do presente” explicou ao público, que sentia a falta do violino, mas que também ficou extasiado pela apresentação.
No ano seguinte, Piazzolla retornou com Agri. “O violino é o instrumento que conecta diretamente com a alma e transcende o tempo”, explicou Piazzolla no meio da apresentação. Não era incoerência. Os gênios criam outra forma de coerência.
Piazzolla muito admirava João Gilberto e Tom Jobim. Ouvi dele que entre músicos, compositores e poetas brasileiros curtia Caetano Veloso, Chico Buarque, Mlton Nascimento, Egberto Gismonti, Geraldo Carneiro e Artur Moreira Lima.
Nessa visita ao Rio, fui o motorista de um Dodge Dart preto, encarregado de levar Piazzolla à casa de um chefão da Rede Globo em São Conrado. Após pouquíssimos minutos de conversa, Piazzolla viu um teclado de última geração na sala. Sem pedir, sentou-se ao teclado e, durante uma hora, executou clássicos do tango e do jazz. Ficamos paralisados de emoção. Aí ele se levantou e pediu para voltar ao seu hotel porque precisava “revisar alguns arranjos”.
No final dos anos 80, Justo pôde retornar a Buenos Aires. Pouco tempo depois, numa fria manhã de julho, ele sofreu um infarto fulminante. Seu amigo Piazzolla estava longe, em Paris.
Em 1990, pouco depois da morte de Justo, Piazzolla voltou ao Brasil. Em Brasília, onde eu então vivia, ele fez chegar a mim um recado para que eu passasse no seu hotel para pegar dois ingressos para o espetáculo daquela noite no Teatro Nacional. Ao me entregar as entradas para a primeira fila, ele disse: “Na primeira parte, vou tocar para Justo”. Foram as únicas palavras sobre a partida definitiva do seu amigo.
Fui ao Teatro Nacional. Diante do auditório lotado, Piazzolla abriu o concerto: Quejas de Bandoneón, Milonga del Angel, Primavera Porteña. Até que chegou a vez de Adios Nonino. Piazzolla apertou mais o bandoneón com suas mãos fortes ao tocar para o seu amigo de meio século. Eu também sentia no peito cada aperto dos seus dedos longos e deformados. Pulsava a dor de todos os órfãos, o vazio da ausência, a perda sem consolo. Levado por essa música depois brotou uma calma celestial, a acariciante nostalgia de momentos de puro amor. O final de Adios Nonino é sutil. Essa noite Piazzolla fez o bandoneón soltar até o último sopro de ar, lenta e docemente.
Parecia dizer: “Meu amigo, descansa em paz”.

Fonte: Golfe Empresas